O Enterro de José Dirceu
Por Hildegard Angel
"Neste momento que vive nosso país, uma adaptação do magnífico
discurso de Marco Antônio, extraído da peça “Júlio César”, de William
Shakespeare.
Amigos, brasileiros, meus compatriotas,
escutem-me. Vim para enterrar José Dirceu, não para louvá-lo. O bem que
se faz é enterrado junto com os nossos ossos, que seja assim com
Dirceu. O nobre ministro Joaquim Barbosa disse a vocês que José Dirceu
era ambicioso. E, se é verdade que era, a falta era muito grave, e José
Dirceu pagou por ela com a vida, aqui, pelas mãos do Relator e dos
demais Ministros do Supremo Tribunal Federal, sem esquecer de citar o
nobre Procurador Geral da República. Pois Joaquim Barbosa é um homem
honrado, e assim são todos eles, todos homens honrados.
Venho
para falar neste emblemático "funeral" de José Dirceu. Ele era meu
amigo, fiel e justo comigo. Mas Joaquim Barbosa diz que ele era
ambicioso. E o ministro Barbosa é um homem honrado.
José Dirceu
arriscou sua juventude, os anos mais vigorosos de sua vida, e dedicou
todos os seus sonhos a tentar libertar o Brasil de uma ditadura
sanguinária. Isto seria uma atitude indigna e ambiciosa de Dirceu?
Quando o povo sofria oprimido, Dirceu se solidarizava. Ora, a ambição
torna as pessoas duras e sem compaixão. Entretanto, Barbosa diz que
Dirceu era ambicioso. E Barbosa é um homem honrado.
Vocês todos
souberam que, travando seu bom combate, por três vezes, Dirceu teve que
se despojar de tudo, de seu país, de sua família, de seu rosto e até de
renunciar à sua identidade. Passou a se chamar Daniel, teve que mudar o
nome para Carlos Henrique. Enfrentou o bisturi do cirurgião,
desfigurando a própria face. Escondeu da mulher que amava, mãe de seus
filhos, o seu passado, para proteger a família do perigo de saber quem
de fato ele era, clandestino que estava em seu próprio país. Em nome de
uma ideologia, ousou viver e sobreviver despojado dos mais básicos
elementos essenciais à auto-estima de um indivíduo. E se despojou de um
ministério poderoso, de um governo que ajudou a eleger, para travar nova
luta. Seria este um homem ambicioso? Mas Barbosa diz que ele era
ambicioso, e Barbosa, todos sabemos, é um homem honrado.
Eu não
falo aqui para discordar do que o digno ministro Barbosa falou. Mas eu
tenho que falar daquilo que eu sei. Muitos de vocês, se não amaram
Dirceu, pelo menos o admiraram, e tinham razões para isso. Qual a razão
que os impede agora de homenageá-lo na morte?
Ontem, a palavra
deste homem seria capaz de enfrentar o mundo, agora, está aqui,
desmoralizada, morta. E um homem de palavra morta é um homem morto.
Ah! Se eu estivesse mal intencionada, disposta a aliciar os seus
corações e mentes à revolta, eu falaria mal de Barbosa e de Marco
Aurélio ou de Mendes e de Weber ou de Celso e Lucia e Britto, os quais,
como sabem, são homens e mulheres honrados. Não vou falar mal deles.
Prefiro falar mal do morto. Prefiro falar mal de mim e de vocês do que
destes homens e mulheres honrados.
Mas eis aqui um email de
Dirceu! Eu o encontrei em minha caixa de correio. É sua
carta-testamento. Quando as pessoas do povo a lerem (porque,
perdoem-me, eu não pretendo lê-la), elas se lançarão para beijarem os
ferimentos de Dirceu e molhar os lenços no seu sangue.
O quê?
Vocês exigem que eu a leia? Tenham paciência, amigos, mas eu não devo
fazer isso. Vocês não são de madeira ou de ferro e, sim, humanos. E,
sendo humanos, ao ouvir o testamento de Dirceu vão se inflamar, ficarão
furiosos. É melhor que vocês não saibam que são os herdeiros de Dirceu!
Pois se souberem... o que vai acontecer?
Continuam a insistir? Então
vocês vão me obrigar a ler o email-testamento do Zé? Façam então um
círculo em volta do corpo e deixem-me mostrar-lhes Dirceu morto, aquele
que escreveu este testamento.
Brasileiros. Se vocês têm
lágrimas, preparem-se para despejá-las. Vocês todos conhecem este manto.
Vejam, foi neste lugar que a sentença do ministro Barbosa penetrou.
Através deste outro rasgão, o ministro Fux, tão querido de Dirceu,
proferiu o seu voto e, quando ele o concluiu, vejam como o sangue de
Dirceu escorreu do ferimento. E oh! Deuses, que golpe brutal para
Dirceu, que tanto o admirava! Foi neste momento que seu coração parou.
Então eu e vocês e todos nós também tombamos.
Sim, agora vocês
choram. Percebo que sentem um pouco de piedade por ele. Boas almas.
Choram ao ver o manto de José Dirceu despedaçado.
Bons amigos,
queridos amigos, não quero estimular a revolta de vocês. Aqueles que
praticaram este ato são sábios e honrados e já apresentaram a vocês as
suas ponderações, queixas e razões. Eu não vim para agitar seus
corações. Eu não sou uma boa oradora, como o notável ministro Joaquim
Barbosa. Sou apenas uma mulher simples e direta, que ama os seus amigos.
Mas já que tanto insistem, revelo enfim o conteúdo da carta-testamento assinada por Dirceu.
Para vocês, ele deixou todos os seus sonhos de um Brasil mais cidadão,
com menos desigualdades, um Brasil nacional, dono de seu nariz, e para
os herdeiros de vocês e para sempre.
Este era José Dirceu. Quando aparecerá outro como ele?"
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